Os Xutos e Pontapés vão estar pelas 22 horas na Feira de São Mateus, sendo o custo do bilhte de 7.50 euros.
Os Xutos são uma
instituição. Há o fado, o futebol e Fátima, e depois há os Xutos (enrolando
joints com a mortalha da Amália, tomando banho na aguardente de Eusébio,
jogando a dinheiro com os três pastorinhos). Os Xutos são como nós, gente
comum, tão portugueses como as sardinhas no pão. Quem nunca cruzou os braços em
X e não sabe cantar “Para Ti Maria”, traiu a sua pátria.
Tudo começou em 1978,
com os punks Zé Pedro e Zé Leonel a quererem ser os Clash da Encarnação. Zé
Pedro era apenas o bom rebelde, com um alfinete-de-dama a aconchegar o sorriso
aberto. Já Zé Leonel, com as suas orelhas pintadas de verde, era avariado antes
do punk existir. Não faziam mal a uma mosca, mas quem nesse tempo se cruzasse
com eles no passeio depressa mudaria para o outro lado da rua.
Zé Pedro tocava
guitarra (se é que se podia chamar tocar àqueles três acordes enferrujados). Zé
Leonel era a voz e o desvario. Faltava agora recrutar os demais. Para a bateria
foram buscar um beto resmungão do Restelo, um tal de Kalú, importado do Porto.
Para o baixo, arrolaram um tipo de Almada, estudante de Agronomia, um tal de
Tim. Os Xutos já não eram apenas uma fantasia sonhada no café Vá-Vá ou na
cervejaria Trindade. Eram agora de carne e osso, tão palpáveis como a cara
esburacada de Zé Pedro. Em 1979, dão o primeiro concerto nos Alunos de Apolo. À
boa maneira punk, tocam quatro temas em seis minutos. A
vida malvada acabava de estrear.
1981 é um ano de
mudanças. Zé Leonel começa a faltar aos ensaios, obrigando o desgraçado do
baixista a substitui-lo na voz. O desleixo persistiu até que não restou outra
alternativa senão dar um chuto e um pontapé no carismático fundador. A
contragosto, Tim torna-se também o vocalista. Por outro lado, a guitarra de Zé
Pedro era demasiado lacónica para o som que buscavam. É então que Francis entra
para a guitarra-solo. Estavam, por fim, prontos a gravar.
A vida discográfica
dos Xutos começou como a vida sempre começa: com “Sémen”. Em 1981, o lobo
António Sérgio aposta no single para a independente Rotação. A canção é enorme,
com um sentido pop irrepreensível, mas a sua semântica peganhenta é censurada
pelas rádios. “Sémen” não vai a lado nenhum mas fecunda o primeiro longa
duração- o apunkalhado 78/82. As suas guitarras ásperas assustam muita gente.
Os Xutos são então vistos como uma fauna perigosa. As referências ao incesto e
à heroína não ajudam, para não falar da blasfémia de “Avé Maria“. Os rebeldes
dos subúrbios babam-se, os meninos dos Salesianos benzem-se. Como se não
bastasse, o disco chega em contraciclo: a explosão do rock português havia
desvanecido. Apesar das boas críticas, 78/82 vende pouco. O azar persegue: a
Rotação abre falência.
Francis era um
excelente guitarrista, mas nunca foi Xutos de alma e coração. Nunca comungou da
ética de rua e combate dos demais. Foi, portanto, sem surpresa que acaba por
sair da banda em 1984. É então que o mágico João Cabeleira entra em cena.
Tímido, sovina nas palavras, engrandece quando começa a tocar: um virtuoso, com
um estilo muito próprio, cheio de imaginação. O primeiro registo com o mago é
“Remar, Remar”, publicado no mesmo ano pela Fundação Atlântica. Este single é,
talvez, o melhor tema dos Xutos, um hino à resistência num país claustrofóbico
que frustra “todas as tuas explosões”. O lado B é também encantador, a nublada
“Longa se Torna a Espera”. Mas uma qualquer maldição deve ter sido rogada sobre
as editoras independentes que os apoiam. A Fundação Atlântica
submerge no seu auge.
Os Xutos estão de
novo órfãos, sem editora. Enviam maquetes para a Valentim de Carvalho mas a
major prefere não arriscar. Viram-se então para a sua segunda casa: o
emblemático Rock Rendez Vous. Primeiro, através da colectânea Ao Vivo no Rock
Rendez Vous em 1984 (onde assomam “Esquadrão da Morte” e “1º de Agosto”). Depois,
através de um segundo longa-duração, o mítico Cerco, publicado em 1985 já com
Gui na tripulação.
Os Xutos contam agora
com dois pintores: a guitarra irrequieta de Cabeleira e o saxofone expressivo
de Gui. Com os cinco magníficos finalmente reunidos, só poderia germinar um
enorme disco, onde “Homem do Leme”, “Conta-me Histórias”, “Barcos Gregos” e
“Sexo” têm de se digladiar pela disputa do pódio. O som é roufenho, como se
tivesse sido gravado num leitor de cassetes do ZX Spectrum; o que só abrilhanta
ainda mais a sua aura de disco de raiva e resistência.
Ignorados pela
indústria, não restava outra alternativa aos Xutos senão desdobrar-se em
concertos, onde quer que fosse, por qualquer vintém. Cada concerto era um
combate, uma trincheira de público a conquistar com sangue e suor. Nas noites
de 31 de Julho e 1 de Agosto de 1986, dão-se os lendários concertos no Rock
Rendez Vous. Os espectáculos são gravados, captando os Xutos no auge da sua
fase de culto, a taça da popularidade prestes a transbordar. Mas só catorze
anos depois é que 1º de Agosto no Rock Rendez Vous vê a luz do dia. Felizmente,
1986 é um ponto de viragem no mercado nacional: a indústria voltando a investir
no rock português. Numa dessas mágicas noites, os Xutos assinam pela major
Polygram. Suspiro de alívio. Depois de tantos anos de luta, a travessia no
deserto chegara ao fim.
Em 1987, Circo de
Feras sai para a rua e é disco de ouro. Os Xutos estão oficialmente na primeira
divisão do rock nacional. “Não Sou o único”, “Vida Malvada” e “N’América” são
hinos que sabemos de cor. É o álbum operário dos Xutos, uma espécie de Bruce
Springsteen com pastéis de bacalhau. Nele assomam sons fabris: o ascensor de
“Contentores” e o martelar na bigorna em “Desemprego”. Um disco brilhante que
nos ensopa a alma em ferro e óleo.
Em 88, os Xutos sobem
ainda mais a parada, naquele que é o pico da sua imaginação melódica. “Para Ti,
Maria”, “À Minha Maneira” e “A Minha Casinha” são apenas a ponta do iceberg de
um disco perfeito. É um álbum de uma alegria transbordante e contagiosa.
Depressa chega a disco de platina. Oferece-se a discografia completa dos Xutos
a quem encontrar uma sequência de acordes mais bonita da que a de “Prisão em
Si”.
Para divulgar 88, os
Xutos fazem a maior digressão que Portugal conhecera até então. Depois de
dezenas de concertos por todo o país, a tournée encerra no Pavilhão dos
Belenenses, com três noites lotadas na véspera de Agosto. Os espectáculos foram
gravados para o triplo-álbum Ao Vivo, publicado ainda em Novembro. Vinte e oito
gemas retratam os Xutos no pico absoluto da sua carreira. De novo, disco de
platina, seguindo o modelo dos Clash com Sandinista: a banda aceita receber
menos para que o disco triplo custe aos fãs o mesmo que um disco normal. Os
Xutos têm Portugal a seus pés.
Em 1989, apareceu
mais um grande single nos escaparates: “Se Me Amas” no lado A, “Submissão” no
lado B; dois clássicos bem conhecidos dos concertos mas gravados agora pela
primeira vez em estúdio. Os anos 80 não podiam ter acabado de melhor forma.
Já o virar da década
deu azar. Gritos Mudos é o primeiro passo em falso dos Xutos, mal recebido pelo
público e pela crítica. O problema não é a sua produção limpa (já 88 a tinha
sem atrapalhar ninguém) nem a sua escuridão (já o Cerco era sombrio sem mal
algum vir ao mundo). O revés é de outra ordem: menos inspiração melódica, menos
canções memoráveis. Se exceptuarmos a belíssima canção-título (e talvez a surf
music de “El Tatu”), poucos são os temas realmente dignos de figurar no cânone
dos Xutos. Não é um mau disco; mas também não é muito bom.
Mergulhados em
dívidas, e com problemas de management, os Xutos entram em crise interna. Gui
abandona a banda, e os demais deixam os Xutos em banho-maria, enveredando por
projectos paralelos. Tim integra a Resistência; Zé Pedro e Kalú juntam-se ao
Palma’s Gang e abrem o Johnny Guitar (a tentativa possível de substituir o
defunto Rock Rendez Vous). Com a saída de Gui, chega ao fim a fase clássica dos
Xutos, de longe a mais inspirada. Um percurso criativo quase perfeito.
1991 é um ano de
ressaca, de desnorte, de rumo indefinido. Especulava-se que a banda ia acabar,
e não deixa de ser irónico ter havido essa possibilidade, o fim da maior banda
de rock nacional de todos os tempos, exactamente numa altura em que a música
cantada em português, puxada pelo enorme sucesso da Resistência, estava
finalmente nos ouvidos do grande público. Ainda assim, temos de destacar o
lançamento da biografia “Conta-me Histórias”, de Ana Cristina Ferrão, ainda
hoje a “bíblia” fundamental para entender a história dos primeiros anos da
banda. Para quando uma urgente actualização e reedição?
Em 92, dá-se o
pontapé na crise, da forma como os Xutos sempre haviam feito, a trabalhar.
Entram em estúdio com a ideia de fazer um álbum duplo, um statement. Acabam por
ceder à pretensão da editora e concentrar-se num de cada vez, com a edição,
perto do final do ano, de Dizer Não de Vez.
Em formato quarteto,
o disco é a casa de “Ai a minha vida” e, sobretudo, de “Chuva Dissolvente“,
single enorme que conquista novos fãs e lembra aos mais antigos que ainda havia
ali vida, e coisas para dar ao mundo. A prova veio das vendas bastante
apreciáveis de Dizer Não de Vez e, sobretudo, da sua actuação no Festival
Portugal ao Vivo, em 1993, uma celebração da música portuguesa eléctrica. Os
Xutos em palco são como animais à solta, e dominaram o evento, reclamando aí a
sua coroa. Uma das muitas actuações que ficaram para a História. Ainda nesse
ano é editado Direito ao Deserto, a tal segunda metade do programado disco
duplo.
Em 1994, um evento
simbólico e emocional. Kalú jogou em casa quando os Xutos comemoram 15 anos enquanto
banda, no Coliseu do Porto. Para além do agora quarteto, três convidados muito
especiais desta família especial: Gui, Francis e Zé Leonel. O ano é passado na
estrada, cimentando tijolo a tijolo aquilo que é a grande força da banda, a
união que, em palco, consegue ter com os fãs, novos e velhos.
Um ano depois, novo
marco na carreira da banda, e um que conquistaria muitos novos ouvintes.
Inspirado no modelo do MTV Unplugged, a Antena 3 convida os Xutos para um
concerto acústico. O sucesso foi tal, assente na força das músicas mesmo assim
mais calmas e despidas, que deu origem a Ao Vivo na Antena 3, que nem estava
planeado. Sai bem em cima do Natal e explode nas tabelas de vendas. Seguiu-se
uma digressão nesse formato acústico, mais uma vez bem sucedida. O ano de 96
não fecha sem que a Blitz tenha praticado um acto de manifesta justiça: na
primeira cerimónia dos Prémios Blitz, entrega o Prémio Carreira aos Xutos &
Pontapés. Quem mais?
Terminado o contrato
com a Polygram, é hora de encontrar nova casa, desta feita a EMI, por quem
lançam Dados Viciados, em 1997. O evento comemora-se, naturalmente, na estrada,
com uma digressão dedicada à promoção do disco mas que conta, obviamente, com
muitos dos sucessos do passado. Este é, aliás, o modus operandi desses anos e
que, de certa forma, dura até hoje. Discos sempre de qualidade média/alta mas
sem ombrear com os da década de 80, que sustentam uma digressão com energia e
material renovado e que vão pingando, aqui e ali, novos singles que se tornam
sucessos de palco.
Em 1999, a banda
atinge um número de que muito poucas se podem orgulhar: os 20 anos de carreira.
O ano é de celebração, com a edição do disco XX anos XX Bandas, no qual 20
grupos nacionais dão o seu cunho ao cancioneiro já histórico dos Xutos. O ponto
alto é a festa num esgotado Pavilhão Atlântico. Ainda em 99, o sempre
irrequieto e multifacetado Tim estreia-se a solo, com o disco Olhos Meus.
Em 2000 não há disco
novo, mas há disco! E que disco! É finalmente editado 1º de Agosto no Rock
Rendez Vous, gravado em 1986 mas nunca editado. Continua a ser uma
extraordinária amostra do poder dos Xutos dos primeiros anos. No ano seguinte,
novo álbum de originais, XXI, e concertos atrás de concertos, atingindo a marca
de 600 mil espectadores só em 2001.
Segue-se algo que se
tem tornado habitual, não só nos Xutos mas em todas as bandas grandes que
trazem tanta História às costas: a edição de registos ao vivo, como são
exemplos Sei Onde tu Estás e o acústico Nesta Cidade, bem como o muito bem
sucedido DVD Ao Vivo no Pavilhão Atlântico.
Há muito que os Xutos
são uma instituição, mas o país reconhece-o oficialmente em 2004, quando os
rapazes comemoram 25 anos de carreira: o Presidente da República, Jorge
Sampaio, condecora os Xutos com a Ordem do Infante D. Henrique. Ainda nesse
ano, regresso aos discos de originais, com o bem conseguido O Mundo ao
Contrário. O Pavilhão Atlântico esgota duas noites para a festa de aniversário.
Em 2007, a tragédia
atinge o núcleo duro da banda, com a morte súbita de Marta Ferreira, irmã de
Kalú e manager dos Xutos na última década. É um tempo de consternação e de
profundo pesar, e a resposta só podia ser uma, voltar à estrada. Um dos
destaques é a celebração dos 20 anos de Circo de Feras, que dá origem a três
concertos únicos e esgotados no Campo Pequeno, em Lisboa. No ano seguinte houve
tempo para voltar de novo ao passado e “regravar” Cerco, disco mítico mas cujo
som sempre deixara a banda insatisfeita (sem razão, dizemos nós). O Cerco
Continua, versão revista e aumentada, é finalmente editado em 2012.
Os 30 anos são
atingidos em 2009, sendo o ponto mais alto o grande concerto no Estádio do
Restelo, com convidados como Camané, entre outros. Simbolicamente, é reeditado
o fabuloso Xutos ao Vivo, de 88, e os rapazes arrancam mais um disco de
originais, chamado simplesmente Xutos & Pontapés, que se revela um sucesso
de vendas. Zé Pedro, que se vinha debatendo com problemas de saúde depois de
anos de abusos, é obrigado finalmente a parar em 2011. Mas a digressão
continua, com o seu roadie Tó Zé no seu lugar. Depois do delicado transplante
de fígado, regressa como um herói no palco principal do então Optimus Alive. É
também a ocasião para o eterno guitarrista dos Xutos lançar o seu “álbum a
solo”, chamado Convidado, na prática uma compilação de colaborações que foi
fazendo ao longo dos anos em discos de amigos como Paulo Gonzo, Jorge Palma e
Sérgio Godinho. Em 2012 é a vez de Kalú se estrear a solo, com Comunicação.
Com os 35 anos a
aproximar-se, no ano seguinte, os Xutos aproveitam 2013 para preparar novo
disco de originais, e até agora o seu último, Puro, que seria editado em 2014,
ano de tão especial aniversário. A festa é mais uma vez no então Meo Arena
(agora Altice Arena) com 30 mil pessoas em duas datas esgotadas e históricas.
A história recente
dos Xutos tem-se feito assim, de muitas digressões, concertos cheios (são
obrigatórios e brutalmente eficazes no palco principal do Rock in Rio Lisboa,
desde a primeira hora), novas músicas e um tratamento adequado do passado que
orgulhosamente podem ostentar, seja através de discos ao vivo ou de reedições
mais cuidadas.
O grande ponto de
interrogação na vida da banda chega em 2017, devido à deterioração da saúde de
Zé Pedro. O grupo chegou a não saber se este estaria em condições para o grande
e comovente concerto no Coliseu dos Recreios, no qual uma plateia emocionada
mimou e amou como sempre e como nunca este verdadeiro herói do rock português.
Como sempre fizeram
na cara do perigo, os Xutos avançam com vontade de ferro, cerrando os dentes,
agarrando-se uns aos outros, aos seus fãs e à História que juntos construíram.
Zé Pedro luta pelo restabelecimento com a garra de um garoto que, no longínquo
ano de 78, decidiu fazer uma banda, que se tornaria a maior instituição do rock
nacional de todos os tempos. Há até um disco novo em preparação, uma espécie de
ousado bluff quando o futuro é tão
incerto.
Não importa. Agora,
como sempre, os Xutos fazem as coisas “à sua maneira”, e nós só temos de estar
gratos. Por serem quem são, pelos milhões de espectadores satisfeitos, por
termos crescido com eles e com o rock feito e cantado em português, por nos
terem dado ao longo de mais de 30 anos a banda sonora das nossas vidas.
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